Mercado de leilões

11 de dezembro de 2017

Um sobrenome que virou sinônimo de leilão

Pergunte aos irmãos Luiz Fernando e José Eduardo de Abreu Sodré Santoro quais foram as grandes decisões que tomaram para desenvolver o mercado de leilões e construir a organização-símbolo desse segmento no Brasil e eles dirão que o sucesso se deve mais à consistência do trabalho cotidiano e aos resultados que proporcionam a vendedores e compradores do que às ideias inovadoras que tiveram. Mas basta mergulhar um pouco mais na história para descobrir que tanto a organização quanto o segmento devem muito à ousadia, ao empreendedorismo, às decisões acertadas e ao espírito inovador destes fundadores.

1,5 milhão de carros

A Sodré Santoro é a maior organização de leilões da América do Sul. Atua na venda de automóveis, imóveis e uma infinidade de outros produtos, como aeronaves, embarcações, máquinas operatrizes, móveis, computadores e sucata industrial há quase 40 anos. Os números impressionam. Só de carros, já leiloou mais de 1,5 milhão de unidades – o equivalente ao que as seis maiores montadoras que atuam no Brasil produziram no ano passado. Para expor o que vende, possui cinco pátios e se prepara para lançar o sexto, que totaliza 2 milhões de metros quadros, área superior à do Parque do Ibirapuera.

Mais que isso, fizeram o próprio sobrenome virar sinônimo do segmento. Os fundadores e seus filhos, que hoje estão assumindo o comando da organização, contam que quando apresentam seus documentos em diversos lugares, é comum ouvirem a pergunta: “Sodré Santoro dos leilões?”. Um reconhecimento construído com muita dedicação.

Pátio da Sodré Santoro, em Guarulhos

Como tudo começou

Foi Luiz Fernando quem iniciou o negócio, em 1979. Tinha menos de 30 anos de idade, três faculdades concluídas (economia, direito e comunicação social) e trabalhava como operador na Bolsa de Valores de São Paulo. A função de leiloeiro estava regulamentada no Brasil desde 1932, mas até então tinha pouco destaque, se restringindo basicamente ao segmento de pregões judiciais. Ele vislumbrou a oportunidade de estender esse sistema de negociação a outros setores e foi atrás de informações e da nomeação para atuar como leiloeiro.

Viajou com o irmão José Eduardo para ver de perto como esse negócio funcionava em outros países, sobretudo nos Estados Unidos. Eles ficaram especialmente impressionados com os leilões de carros, inclusive como sucata, mas esse mercado ainda era pequeno no Brasil. O que havia em volume maior por aqui eram sobras de produção industrial, como retalhos de aço que as fábricas amontoavam em seus pátios e de tempos em tempos vendiam sem se preocupar muito com o preço alcançado.

Luiz Fernando, à esquerda, e José Eduardo, à direita/FOTO: ALAN TEIXEIRA

Vende-se um viaduto

Eles sabiam que, por meio de leilão, conseguiriam preço melhor para a sucata e foram atrás de clientes. Mas tiveram uma dificuldade imprevista com empresas privadas. “Naquela época, as pessoas associavam a palavra leilão à venda de ativos de companhias falidas. A gente chegava num possível cliente, expunha a ideia e eles diziam: ´Você está louco? Vão pensar que nós falimos´. Havia um preconceito forte,” conta Luiz Fernando.

Os primeiros clientes acabaram sendo empresas públicas, que não tinham esse tipo de preocupação e, além disso, poderiam se beneficiar de outra vantagem que os pregões abertos proporcionam: a transparência da negociação, um atributo especialmente importante no caso de estatais.

Um leilão dessa época acabou tendo repercussão muito acima do esperado. A Dersa, empresa que administra as rodovias paulistas, contratou a Sodré Santoro para leiloar veículos abandonados após acidentes ou apreensões nas estradas. “Na reunião, perguntei se não tinham outros materiais para leiloar, além dos carros, e alguém, não sei se falando sério ou de brincadeira, lembrou de um viaduto desativado no km 44 da Via Anchieta construído com treliça metálica. Pensei: ´Por que não?´. Então colocamos o viaduto no leilão e comunicamos o mercado. O interesse da imprensa foi enorme. A notícia saiu durante vários dias nos jornais. No dia do leilão, tinha uma multidão de jornalistas acompanhando”, recorda Luiz Fernando. “Saiu em todos os canais de TV.”

O lote foi arrematado, mas o negócio acabaria sendo desfeito alguns dias depois por divergências em relação à forma de demolição do viaduto: o comprador queria implodi-lo, alternativa proibida pela Dersa. A estrutura permanece abandonada no mesmo local até hoje.

A sucata de amanhã

Aos poucos, os irmãos chegaram às companhias privadas – e foi então que eles introduziram uma novidade que trouxe grande resultado para os clientes e para a própria organização: a venda futura de sobras industriais.

O sistema foi implantado inicialmente em uma importante indústria de eletrodomésticos. Assim como outros fabricantes de bens duráveis, a empresa tinha uma peculiaridade em relação à geração de sucata: o tipo e o volume das sobras eram relativamente constantes e previsíveis – nessa indústria, eram principalmente retalhos das chapas de aço cortadas para a fabricação de fogões, geladeiras e máquinas de lavar.

Luiz Fernando se inspirou nas vendas futuras do mercado de ações e sugeriu à companhia leiloar não apenas as sobras acumuladas no pátio, mas tudo o que fosse gerado em períodos futuros. Deu certo.  A novidade se espalhou e vieram muitos outros clientes. “As empresas desativavam seus pátios de sucata, que eram feios, e ainda recebiam antecipadamente pelas sobras que iriam gerar”, ele recorda. “Sem contar que, na época, o Brasil vivia um período de inflação altíssima e o recebimento era antecipado.” Segundo ele, por volta de 1985, seis anos após a fundação, a Sodré Santoro já atendia cerca de 50% das indústrias do Estado.

Do alto da Kombi

Paralelamente à consolidação desse mercado, iam buscando outros segmentos, como os leilões judiciais e a venda de veículos de seguradoras recuperados de furto ou acidentados e bens que os bancos retomavam de financiamentos não pagos – principalmente imóveis e automóveis.

Naquele tempo, o palco sobre o qual Luiz Fernando e José Eduardo comandavam boa parte dos leilões era uma perua Kombi que funcionava como carro de som. Eles ficavam com parte do corpo para fora do teto solar do veículo e, com o microfone na mão, apresentavam os lotes e estimulavam os compradores a dar seus lances.

Em pátios com muitos carros ou outros produtos expostos, a Kombi ia mudando de lugar para ficar mais perto dos novos lotes a serem vendidos e dos interessados em comprá-los. Finalizavam cada negociação com a tradicional batida do martelo, que para eles simboliza mais do que a conclusão de uma venda. Representa a paixão pelo negócio.

Sodré Santoro, Km 224,06 da Rodovia Dutra, Guarulhos. Na foto, pátio com motocicletas que foram leiloadas/ FOTO: VALERIA GONCALVEZ/AE

Vem recessão por aí

Em 1989, eles enxergaram uma ameaça e uma oportunidade no horizonte. A inflação estava completamente fora de controle, tendo atingido inacreditáveis 1.764% naquele ano, e o candidato Fernando Collor ganhara as eleições com a promessa de acabar com ela rapidamente. “Pensamos: ´vem recessão forte por aí´”, conta Luiz Fernando. “A produção industrial vai cair, o mercado de sucata vai encolher e precisamos nos preparar para a mudança.”

Em compensação, eles previram grande aumento na devolução aos bancos de imóveis e, principalmente, carros financiados – e direcionaram o foco para esses negócios. Isso exigia uma mudança importante. Até então, os leilões que a organização realizava aconteciam quase sempre na sede das empresas vendedoras. Para crescer no mercado de carros, porém, precisavam investir em pátios próprios – e foi o que fizeram.

Em 16 de março de 1990, um dia após assumir o governo, Collor anunciou um plano econômico arrasador. Para reduzir drasticamente o consumo, confiscou todo o dinheiro que a população tinha depositado no banco acima de 50 mil cruzeiros – o equivalente hoje a R$ 9,7 mil. Esses valores só começariam a ser devolvidos dali a 18 meses e mesmo assim aos poucos.

Leilão a prazo

A recessão se aprofundou e logo as retomadas de carros financiados se multiplicaram. Mas como vendê-los num momento em que ninguém tinha dinheiro disponível nem mesmo para eventuais pechinchas? Luiz Fernando levou uma ideia nova aos bancos: vender os carros a prazo, algo inédito naquela época e que até hoje é extremamente incomum no segmento de leilões, que se caracteriza pelas negociações à vista.

Exatos trinta dias após o Plano Collor, a Sodré Santoro anunciou o primeiro leilão de carros pós-confisco com compras parceladas em dez prestações. “A procura foi fantástica”, relata Luiz Fernando. “Tínhamos 150 carros à venda e apareceram 4 mil interessados.” Nos dias e meses seguintes, as vendas a prazo continuaram gerando ótimos resultados.

Nos anos seguintes, a organização deu prosseguimento à estratégia de investir em pátios próprios para armazenar e expor as mercadorias dos clientes. Em 1996, inaugurou o de Guarulhos, na Grande São Paulo, que figura desde então como o maior da América do Sul, com 300 mil metros quadrados. Além dele, possui unidades em Ribeirão Preto, Bauru, Monte Mor, no interior paulista, e Curitiba. Em 2018, está prevista a inauguração do pátio de Cesário Lange, com mais de 1 milhão de metros quadrados.

Contratos de aluguel à venda

A história da Sodré Santoro traz muitos outros exemplos de inovação. Ainda nos anos 90, um banco que havia tido sua liquidação decretada chamou os leiloeiros para vender seus imóveis. Na conversa, o cliente contou que tinha um problema urgente: devolver os prédios de agências alugados, situados em alguns dos melhores endereços do País, aos proprietários, pagando multa. “Eram contratos com muitos anos de vigência pela frente e que podiam ser transferidos a outros locatários. Então, sugerimos, em vez de devolver, vender os direitos de locação em leilão”, conta Luiz Fernando. “Deu certo. Em vez de gastar com rescisão, eles ganharam um bom dinheiro com aqueles contratos.”

A partir dos anos 2000, começaram a enfrentar um novo desafio: a adaptação do negócio à era da internet. Quem visita o site da Sodré Santoro percebe que os negócios já estão incorporados à era digital. Com as mesmas ferramentas dos maiores portais de leilões do mundo, a organização apresenta milhares de ofertas online, gerando negócios com agilidade e transparência.

Mas Luiz Fernando reconhece que, nesse aspecto, a organização deve mais aos sucessores do que a ele e ao irmão. “No começo, eu e o José Eduardo éramos um pouquinho contrários a investir em internet”, ele afirma. “A gente pensava que teria um público restrito, mas a rede acabou se mostrando uma excelente ferramenta para ampliar o número de compradores, que agora podem estar no Brasil inteiro”.

Os leilões continuam acontecendo presencialmente, mas são transmitidos em vídeo e recebem lances pela internet. Os compradores virtuais arrematam 87% dos lotes, muitos deles depois de visitar pessoalmente os pátios da Sodré Santoro para avaliar previamente os produtos.

Atiçando rivalidades

Os fundadores ainda conduzem alguns leilões. E fazem isso por paixão. “Eu gosto de participar das negociações, de acirrar as disputas”, diz Luiz Fernando. “De olhar nos olhos de um dos interessados e dizer: ´Ele cobriu o seu lance, você vai deixar por isso mesmo?´ De estimular a rivalidade.”

Um dos leilões mais importantes que realizou na última década foi a venda do famoso prédio do antigo Hotel Nacional, um cartão postal do Rio de Janeiro projetado por Oscar Niemayer em 1970, que havia falido e estava abandonado havia 14 anos. Depois que Luiz Fernando bateu o martelo, em 2009, o prédio passou por uma reforma completa e o hotel foi reinaugurado no fim do ano passado.

Mas os fundadores se ocupam hoje mais das decisões estratégicas da organização. O dia a dia está a cargo de três filhos de Luiz Fernando (Carolina, Mariana e Otavio) e do filho de José Eduardo (Flávio), que herdaram dos pais a paixão pelo negócio e cuidam de áreas distintas da Sodré Santoro.

Sonhos para o futuro

Os fundadores têm muitos planos para a Sodré Santoro. Acreditam que ainda há diversos segmentos novos a serem desbravados, mas mantêm os pés no chão. “Você vê tantos exemplos de empresas que eram poderosas no passado, mas não conseguiram se adaptar às mudanças do mercado e desapareceram, então a primeira pergunta que a gente se faz é como fazer o melhor para o negócio de leilões continue prosperando”, diz Luiz Fernando. “Leiloeiro é uma das profissões mais antigas do mundo, acredito que sempre vai existir. Mas a gente não pode ficar contente só com o que passou porque senão fica para trás. Tem de ficar atento às transformações no mundo, às novas oportunidades, e evoluir continuamente.”

Essa filosofia tem sido seguida pelos sucessores, que vêm estudando novas formas de aproveitar o potencial da internet para ampliar o leque de leilões da Sodré Santoro. Pelo menos um projeto inovador deve ser implantado em 2018, provavelmente ainda no primeiro semestre. Luiz Fernando e José Eduardo não revelam detalhes sobre o novo investimento. Mas uma coisa é certa: eles já bateram o martelo.

Detalhe do martelo do leiloeiro/ FOTO: VALERIA GONCALVEZ/AE

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