Se está entrando na adolescência na América do Norte, na Europa e na Ásia, a prática de cidades inteligentes ainda está na primeira infância na América Latina, o que não significa que não possa ter um futuro promissor. Especialistas apontam que, mesmo atrasadas em relação aos seus pares mais desenvolvidos, as grandes cidades latino-americanas começam a caminhar na direção de se tornarem mais inteligentes e amigáveis em relação às soluções de mobilidade urbana. O percurso talvez seja um pouco mais tortuoso, uma vez que a base sobre a qual o conceito será aplicado é repleta de imperfeições.

Um estudo chamado Observatório da Mobilidade Urbana, divulgado em 2010 pela Corporación Andina de Fomento (CAF), avaliou a infraestrutura de transportes disponível em algumas das principais cidades da América Latina. Na época, os resultados não foram muito animadores. Foram analisados sistema viário, cruzamentos com semáforos e vias preferenciais para pedestres, ciclistas e transporte coletivo. No sistema viário, o conjunto de cidades analisadas apresentava 245 mil quilômetros de vias disponíveis para circulação de veículos. Mesmo considerando a ampla oferta de vias na maioria das cidades, o relatório apontou que a qualidade dessas ruas era precária, o que se justificava pelo elevado custo de manutenção. Em Bogotá (Colômbia), por exemplo, 19% das vias principais, 44% das intermediárias e 56% das vias locais apresentavam más condições de preservação.

Porém, estar atrás não significa que essas cidades estão paradas. Boa parte delas está presente nos rankings do estudo Global Cities 2017: Leaders in a World of Disruptive Innovation, realizado no ano passado pela consultoria AT Kearney. O resultado do estudo são dois rankings. No primeiro, chamado Index, estão as que se destacam hoje; no segundo, o Outlook, estão aquelas com maior potencial de desenvolvimento no futuro. O Index é composto por 128 cidades e conta com 14 latino-americanas, seis delas brasileiras. Nesse ranking, a cidade da região mais bem colocada é Buenos Aires (26º lugar). No Outlook encontramos 15 cidades latino-americanas e Santiago como a melhor colocada, em 50º lugar.

ABERTURA E REFERÊNCIAS

Para Ciro Biderman, professor e coordenador do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas (FGV), as cidades latino-americanas que se destacam são aquelas mais preparadas para compartilhar dados e trabalhar com protocolos livres. Para ele, a administração que não estiver pronta para esse ambiente de troca constante de informações e soluções terá dificuldades. “O setor público tem de estar aberto. As cidades que já pensam nisso estão à frente”, diz. Biderman acredita que a transformação será obrigatória. “A inércia de boa parte do setor público pode fazer com que isso demore. Mas não haverá condições de manter o sistema como está por muito tempo”, alerta.

“O setor público tem de estar aberto e ter uma estrutura criada para trabalhar em conjunto com outros agentes da sociedade”, Ciro Biderman, professor e coordenador do Centro de Politica e Economia do Setor Público da FGV.

A diretora executiva do Instituto Cidade em Movimento, Luiza de Andrada e Silva, acrescenta que as cidades que se abrem à participação dos mais diversos agentes têm mais chance de dar certo. “As empresas, assim como as pessoas, precisam conversar mais, participar como agentes de diálogo.”

No Brasil, como no restante da região, o conceito de cidade inteligente e a necessidade de pensar a mobilidade urbana vêm ganhando espaço. André Telles, da iCities, acredita existirem gestores públicos que estão entendendo um pouco mais a importância do tema. “Num contexto de mais de 5 mil cidades, a proporção é pequena, mas há referências de cidades que vêm tentando implementar algumas verticais ligadas ao conceito”, afirma, citando como exemplos Curitiba, Florianópolis e Recife.

“Num contexto de mais de 5 mil cidades, a proporçAo é pequena, mas há referências de cidades que vêm tentando implementar algumas verticais ligadas ao conceito”, André Telles, sócio-fundador da iCities,

Biderman, da FGV, também cita Curitiba como referência. A cidade praticamente inventou o conceito de veículo leve sobre trilhos (VLT) e vem conseguindo manter uma boa densidade em seus meios de transporte. “Eu apontaria também São Paulo, que foi a primeira cidade da América Latina a abrir os dados de GPS de sua frota de ônibus”, conclui.

 

O futuro logo ali

América Latina já apresenta cidades que estão se tornando referência em projetos de mobilidade urbana. Se a infraestrutura joga contra a implementação de projetos inteligentes, algumas das principais cidades latino-americanas vêm se destacando na busca por soluções inteligentes. Veja alguns exemplos:

Capital mexicana é a cidade mais congestionada do mundo

CIDADE DO MÉXICO

Com cerca de 10 milhões de habitantes, a capital mexicana é considerada a cidade mais congestionada do mundo. Os motoristas perdem, aproximadamente, 227 horas por ano no trânsito. Para combater o tráfego intenso, em 2017 o prefeito tomou uma atitude inusitada. Miguel Ángel Mancera Espinos sancionou uma lei que limita a quantidade de estacionamentos que podem ser construídos na cidade. A previsão do Instituto de Políticas para o Transporte e Desenvolvimento (ITDP) é de que, até 2030, a capital mexicana conte com cerca de 70 milhões de veículos. Com a nova lei, a Cidade do México passou a priorizar os deslocamentos que ajudam a descongestionar as ruas.

A atitude inusitada complementa uma iniciativa de 2014, batizada de Lei de Mobilidade. Na prática, as regras deixaram de estar centradas no transporte e nas estradas, passando a se sustentar na mobilidade, agora reconhecida como um direito fundamental dos cidadãos. A lei fixou prioridades para o uso das ruas e passou a ordenar os cidadãos em cinco níveis de acordo com sua forma de mobilidade. Na ponta da pirâmide se localizam os pedestres, que possuem a preferência frente aos demais meios de transporte. No segundo nível estão os ciclistas, seguidos pelos usuários de transporte público. No quarto nível está o transporte de cargas, e no último nível estão os automóveis e as motocicletas. Com essa hierarquização, as políticas passam a ter foco mais claro, priorizando as iniciativas.

Santiago tem o pedestre como foco primário das estratégias de mobilidade

SANTIAGO DO CHILE

A primeira iniciativa de peso surgiu em 2006, com a criação da Transantiago, sistema de corredores de ônibus que integrou o ônibus ao metrô. Na época, a frota de ônibus da cidade estava sucateada, e quase não havia interligações entre os meios de transporte. Desde 2009, são disponibilizadas bicicletas em algumas estações de trem, para os usuários que querem seguir viagem pedalando. O sucesso da iniciativa foi tão grande que o serviço BioBici levou o sistema a mais 12 estações. A ampliação possibilitou incorporar novas bicicletas, juntamente com capacetes e cadeiras para crianças, que podem ser utilizados gratuitamente por qualquer pessoa.

Em 2016, Michelle Bachelet, presidente do Chile, anunciou que 60% da energia usada pelo metrô de Santiago será fornecida, a partir de 2018, por meio de fontes solares ou eólicas. A preocupação ambiental, aliás, anda junto com as questões de mobilidade. O combate à poluição estimulou, por exemplo, a criação dos chamados eixos ambientais. São vias da cidade que, quando determinados níveis de poluição são detectados, tornam-se exclusivas para o transporte público. Santiago também criou níveis de priorização para políticas de transporte, com pedestres como foco primário das estratégias de mobilidade.

Cidade argentina tem mais de 130 quilômetros de ciclovia

BUENOS AIRES

A cidade iniciou, em 2007, a elaboração de seu Plano de Mobilidade Sustentável, que tem o objetivo de dar preferência ao transporte público e favorecer a mobilidade sustentável, com eficiência nas rodoviárias e uso de tecnologias que possibilitem a troca de informações em tempo real. O plano estimulou a criação de ciclovias fechadas, com barreiras, que começaram a ser erguidas em 2009 pelo Governo Municipal. Hoje, Buenos Aires possui mais de 130 quilômetros de ciclovias. Essas ciclofaixas foram projetadas com a intenção de ligar diversos locais estratégicos, como universidades, hospitais, parques e escolas, simplificando a conexão com outras formas de transporte. As ciclovias são feitas em ruas secundárias, evitando que os ciclistas corram riscos em função da alta velocidade dos automóveis e da disputa por espaço com caminhões e ônibus.

Outro exemplo foi a implantação do Metrobus, sistema de BRT, que tem 50,5 quilômetros de extensão e cinco corredo- res. Somente na Av. 9 de Julio, a principal da capital portenha, são três quilômetros de extensão que atendem cerca de 255 mil passageiros diariamente. Com corredores exclusivos, áreas de ultrapassagem, redução do número de pontos de ônibus (antes era a cada 100 metros, hoje é a cada 600 metros), o sistema aumentou a velocidade dos ônibus em até 45%.

Metrocabo é integrado ao metrô e transporta as pessoas em morros

Medellín

A cidade é hoje reconhecida pelo trabalho social executado após a solução de seus problemas com o tráfico de drogas. Parte desse trabalho incluiu a criação de um centro de inovação focado em startups que atuem exclusivamente com o desenvolvimento de soluções de mobilidade urbana. Essas empresas contam com o incentivo de um Conselho Municipal e um Fundo Municipal de Inovação, criados para acompanhar e colocar em prática as soluções desenvolvidas. Não por acaso, a cidade foi uma das primeiras do mundo, juntamente com Bogotá, a implementar um sistema de ônibus com capacidade de transportar 40 mil passageiros/hora, capacidade muito próxima à do metrô. Outro projeto de referência foi a criação do Metrocabo, uma espécie de teleférico integrado ao metrô e utilizado para transportar pessoas em morros cujos topos chegam a mais de 2 mil metros de altura.