Medida Provisória 703

Entenda as regras que pretendem facilitar os acordos de leniência no Brasil

Ninguém se beneficia com a quebra de empresas, diz ex-presidente da SEC

Harvey Pitt (Foto: Divulgação)

Harvey Pitt (Foto: Divulgação)

Punir empresas que tenham infringido a lei com medidas que possam tirá-las do mercado é, em muitos casos, um mau negócio para a sociedade. O importante é que admitam os erros, paguem por eles, os corrijam e adotem medidas para que não se repitam. A opinião é do ex-presidente da Security and Exchange Commission (SEC), Harvey Pitt. Hoje no comando de uma firma de consultoria internacional especializada em questões de governança corporativa, integridade e gestão de crises, a Kalorama Part-ners, Pitt ocupou o cargo de árbitro do mercado financeiro americano entre os anos de 2001 e 2003. Foi o responsável, entre outras coisas, por estabelecer regras para corrigir os excessos corporativos dos anos 1990 e lidar com a turbulência gerada pelos atentados de 11 de setembro.

Desde o início na SEC, foi criticado por adotar uma postura considerada por muitos como condescendente. Escândalos como o da Enron aconteceram durante sua gestão. Acabou se demitindo. Mas algumas das medidas criadas por ele continuam a ser adotadas, com ajustes, até hoje, como a que permite que empresas tenham penas mais brandas ao colaborar com o governo quando investigadas. Na entrevista que segue, Pitt trata do dilema entre impunidade e exagero na punição de empresas.

O governo brasileiro mudou a legislação anticorrupção com a MP 703, para permitir que empresas sob investigação retomem contratos com o poder público, mesmo diante de fortes evidências de condutas ilegais. Para os apoiadores, a MP evita a quebra das companhias, o que pode causar mais mal do que bem. Os críticos dizem que manda a mensagem errada para outras empresas e a sociedade. É possível encontrar um meio-termo entre essas duas situações indesejáveis?
Encontrar esse balanço não é só possível, como é muito importante. E requer que todos os participantes do processo entendam o que é de interesse público. As leis precisam ser respeitadas e as empresas que as violam devem ser punidas, mas de forma que possam continuar a fornecer serviços e produtos com baixa probabilidade de repetirem as mesmas infrações. Quando fui presidente da SEC, publicamos uma resolução sobre cooperação corporativa. O texto diz que se uma companhia descobre que infringiu a lei e efetivamente toma medidas para resolver o problema e minimizar a chance de repeti-lo, o governo dará a ela crédito pela decisão. Essa regulamentação se provou muito efetiva nos Estados Unidos, para a SEC e para os promotores criminais do Departamento de Justiça.

O sr. poderia nos dar um exemplo de companhia que se beneficiou?
Houve o caso da Seabord Corporation [um dos maiores produtores de alimentos dos Estados Unidos]. A empresa tinha uma subsidiária controlada integralmente por ela, que infringiu a lei. Quando a matriz soube do problema, fez uma revisão interna e adotou medidas para corrigir os efeitos dos desvios de conduta, foi à SEC e forneceu todos os documentos e informações relacionadas ao que tinha encontrado e as medidas que havia adotado. Os documentos permitiram à SEC revisar o processo para ver se havia sido feito de boa fé.

E um exemplo oposto, de companhia que não teve a mesma oportunidade?
No começo dos anos 2000, tivemos a Arthur Andersen, auditoria que assinou vários balanços muito ruins de empresas públicas [e foi afetada pelo caso Enron]. Pelo menos 100 mil empregos foram perdidos e reduziu-se a competição entre empresas de auditoria.

Como encontrar um equilíbrio?
É preciso ter muita paciência para trabalhar pelo resultado certo. É preciso ser capaz de escutar os dois lados. Se você não conseguir explicar por que encontrar o equilíbrio é tão importante e explorar boas formas de encontrá-lo, o lado mais forte, normalmente o governo, vai prevalecer. Se sou o regulador e você infringiu a lei, tenho de me certificar de que os prejuízos causados foram compensados. Se eu chegar a um acordo com você, preciso ter certeza de que será improvável você fazer a mesma coisa de novo. Por outro lado, o regulador tem de entender que tirar empresas do mercado é, às vezes, inevitável. Em muitos casos, porém, é exagero. Ninguém se beneficia.

Como decidir que companhias salvar e quais não?
Esta é uma questão crucial. A primeira coisa é olhar como a violação aconteceu, por que foi possível que acontecesse e quem foi o responsável. Alguns tipos de violação refletem comportamentos fora do normal de uma pessoa específica ou de um grupo em situações específicas. Por outro lado, há um tipo de violação que é sistêmica e reflete sérias falhas no sistema ou na empresa. É preciso diferenciar e entender quais fatos permitiram a infração e quais os danos causados. Toda infração precisa ser punida. Mas nem toda infração é um crime para pena de morte. É preciso olhar as circunstâncias. Na SEC, quando encontrávamos um problema num segmento industrial inteiro, propúnhamos uma solução global. Cada companhia, individualmente, era responsabilizada. Mas num pacote.

A regulamentação nos EUA ainda é mesma da sua época na SEC?
Desde que eu deixei a SEC a regulamentação foi refinada. A entidade começou a usar os chamados DPAs, acordos de acusação deferida (Defereed Prossecution Agreements). Agora, quando uma companhia reconhece que violou a lei, o governo diz: se você fizer A, B, C e D, nós não vamos processar você. Mas, se repetir o erro, ou se descobrirmos mais informações que você conhecia e não nos contou, nós vamos à corte e vamos conseguir contra você uma punição mais dura do que receberia se não tivesse aceitado o acordo. Está avançando.