Combate a fraudes, desperdícios e inflação médica foram alguns dos principais temas debatidos na terceira edição do Fórum da Saúde Suplementar, realizado em São Paulo nos dias 5 e 6 de outubro. Com o tema “Encontrar Soluções – É Hora de Agir”, o evento reuniu representantes do setor, acadêmicos e autoridades brasileiras e estrangeiras, diante de mais de quatrocentas pessoas. Na solenidade de abertura, Solange Beatriz Palheiro Mendes, presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), ressaltou a importância de encontrar caminhos já para os próximos dois anos. “A maioria dos diagnósticos dos problemas já foi realizada. O desafio é fazer as melhores escolhas e estreitar o prazo das soluções. Não há mais tempo e paciência para delongas”, disse. E completou: “A saúde não tem preço, mas a medicina tem custo. E ele está ficando impagável. Se no primeiro fórum discutimos a sobrevivência do setor, e no segundo, as escolhas, o tema deste ano é ação. A hora é de agir por uma saúde melhor, e um Brasil melhor.”

Fraudes nos EUA

Para se inspirar em exemplos positivos de outros países, a FenaSaúde, organizadora do fórum, convidou palestrantes internacionais. No primeiro painel do evento, cujo tema foi “Experiências e Desafios com Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPME): EUA e Brasil”, Carmella Bocchino, conselheira da Associação Americana de Planos de Saúde (AHIP, na sigla em inglês), relatou a experiência das operadoras dos Estados Unidos. Ela explicou que, assim como no Brasil, gastos com OMPE crescem nos Estados Unidos, país que representa 40% do mercado global de dispositivos médicos. Os custos são de 171,8 bilhões de dólares, e aumentam 6% ao ano. Cabe à agência FDA avaliar a segurança e eficácia dos produtos e permitir seu uso no país. “Ainda faltam muitas informações que nos permitam rastrear os custos relacionados à substituição ou recall de peças com defeito. Um novo estudo mostrou que os Estados Unidos gastaram 10 bilhões de dólares em dispositivos cardíacos implantáveis defeituosos nos últimos dez anos”, apontou.

A redução de despesas passa por uma mudança no modelo de remuneração dos procedimentos, segundo Bocchino, baseados em valor, qualidade, segurança e custo, não em volume. Uma pesquisa com cirurgiões revelou que 81% não tinham ideia de quanto custavam os dispositivos que implantavam nos pacientes. “Na gestão médica, há grandes hiatos entre a prática baseada em evidências e o atendimento proporcionado ao paciente”, disse a conselheira da AHIP.

Em 2014, 97% dos pagamentos do país foram realizados no modelo fee for service (ver reportagem na página 2). A prevalência caiu para 76% em 2016. Em seu lugar, foram adotados contratos como o ACO (Accountable Care Organizations), no qual hospitais e médicos têm um teto de gastos estipulado previamente. Caso gastem menos, eles repartem a diferença. Segundo Bocchino, esse contrato deve crescer 10% ao ano, e resultou na divisão de 50 milhões de dólares em 2016 entre hospitais e profissionais de saúde.

Outro padrão é o dos pacotes de atendimento, utilizado, sobretudo, na área de produtos ortopédicos e cardíacos. Adotado há oito anos, ele reduz os dias de internação em 17% e a procura por emergências, em 30%. O terceiro modelo é o PCMH (Patient Centered Medical Home), que, baseado na atenção primária, diminui a admissão nos prontos-socorros em 48 a 68%, e a hospitalização, em 34 a 51%. A conselheira contou ainda que há novas leis contra fraudes no país: “Se um médico apresenta a conta de um serviço que não prestou, ou se induz o paciente a escolher um procedimento por um benefício financeiro, tem que ser punido por isso”.

O papel da gestão

No mesmo painel, Thais Jorge de Oliveira e Silva, diretora da Bradesco Saúde, falou sobre a importância da gestão na redução de gastos com OPME. Ela apresentou os resultados de um estudo que comparou o uso de cinco dispositivos importados com mesma qualidade em procedimentos ortopédicos. Em 71% dos casos, utilizava-se o mais caro deles. Em um exemplo sobre o preço do stent nacional, o dispositivo saía em média por 11,5 mil reais em 2010. A partir de negociações diretas com fabricantes, o preço baixou para 7 mil reais em 2014, e 4 mil reais em 2016.

Silva apontou também uma iniciativa da empresa Orizon, que criou o projeto Qualifique, com foco em avaliação de prestadores. A ideia é que, assim como as pessoas podem ver na internet quantas estrelas um hotel ou restaurante possui, o mesmo sistema se aplique aos planos de saúde. “As operadoras já possuem um órgão regulador e os dados estão disponíveis no site da ANS. Há um movimento para hospitais também, ainda tímido, por falta de indicadores. O próximo passo é qualificar o médico”, disse.

Cooperação público-privada

No painel sobre “Cooperação Público-Privada no Combate a Fraudes e Abusos em Saúde”, o convidado Rick Munson, presidente do Conselho de Diretores da Associação Americana de Combate à Fraude na Saúde (NHCAA, na sigla em inglês), reforçou que o trabalho conjunto entre o Estado e as operadoras é essencial para enfrentar esse problema. “Em se tratando de fraudes não somos concorrentes, mas parceiros”, afirmou.

Ele explicou que, há 20 anos, as informações só vinham das seguradoras, não do governo. Isso mudou quando as agências passaram a ser obrigadas a compartilhar os dados com as operadoras de saúde suplementar. “Se um esquema fraudulento é identificado, as informações são publicadas em um sistema compartilhado por agentes públicos e privados”, disse Munson, esclarecendo que a NHCAA trabalha com o FBI, o Ministério Público, o Ministério da Saúde e todas as instâncias do Judiciário.

Entre as fraudes descobertas pelo NHCAA, foi relatado um caso que consumiu três anos de investigação e comprovou um golpe de mais de mais de 3 milhões de dólares aplicado por um cardiologista que fazia cirurgias desnecessárias. O médico foi condenado a quatro anos de prisão. Em outro episódio ainda mais assustador, um onco-hematologista acusado de desviar mais de 500 milhões de dólares do sistema de saúde submetia pacientes sem diagnósticos de câncer a tratamentos de quimioterapia, e acabou condenado a 45 anos de reclusão. Multas e penalidades pesadas foram instituídas pelo governo para coibir fraudes. As seguradoras devem criar departamentos de investigação, de acordo com Munson, e construir relações com o governo. “Só assim se estimula a confiança mútua, o que leva tempo para acontecer”, afirmou.

Judicialização

As medidas do governo brasileiro para reduzir despesas com processos judiciais movidos por cidadão contra o Estado foi o tema da palestra de Francisco de Assis Figueiredo, Secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. “A judicialização cresce a nível exponencial para todos nós”, disse. De acordo com Figueiredo, dez drogas respondem por 90% das ações. “Entre municípios, estados e união, estimamos 7 bilhões de gastos em processos este ano. Temos de tirar dinheiro de outras políticas para fazer esses pagamentos”, afirmou. O remédio mais judicializado, o Soliris, custa 1,5 milhão de reais por cada um dos 414 pacientes do SUS. Uma negociação direta com o laboratório resultou em um desconto de 30%, gerando a economia de 180 milhões de reais.

Um novo software é outra aposta do Ministério da Saúde para cortar custos. “Ele cruza os dados das demandas judiciais e confronta as informações: quem pediu, por qual escritório, de qual laboratório. Esse mecanismo permitiu desmantelar uma fraude que causou 40 milhões de reais de prejuízo ao Estado de São Paulo”, relatou. Para Figueiredo, falta diálogo na saúde privada. “Na primeira convocação que fizemos para discutir a criação dos planos acessíveis, convidamos 50 entidades. O que mais me chamou atenção foi que o setor da medicina suplementar precisa conversar mais. As visões sobre o que pode ser ofertado à população brasileira são muito heterogêneas.”

O caso australiano

O papel dos setores público e privado foi também tema do painel “Cobertura, Concorrência e Escolhas”, cujo representante internacional foi Rachel David, CEO do Sistema de Saúde Privada da Austrália (PHA, na sigla em inglês), entidade que congrega 22 dos maiores operadoras de saúde suplementar do país e abarca 96% da população coberta pelas seguradoras.

Assim como no Brasil, os custos crescentes do setor são um desafio na Austrália. Metade dos 24 milhões de australianos possui algum tipo de cobertura privada, com gastos que sobem em média 5% ao ano. “Os seguros são utilizados por indivíduos mais velhos e com doenças crônicas. Pessoas saudáveis deixaram os planos por dificuldade de pagar as mensalidades”, afirmou. Uma das ações adotadas pelo governo do país para equilibrar as contas foi cobrar tributos mais elevados de indivíduos com renda alta e sem plano de saúde. Outro aliado na contenção de custos é o médico de família. Um australiano só pode se consultar com um especialista se encaminhado por um clínico geral. “Em países onde as pessoas podem ser atendidas diretamente por um especialista, as contas ficam inflacionadas”, disse David.

A fuga de beneficiários levou a uma proliferação de planos de saúde, com coberturas variadas, confundindo os consumidores. A solução foi adotar uma terminologia única para todas as operadoras, de maneira que o cliente pode comparar as apólices. Além disso, no ano passado, a Rio-2016 serviu de inspiração para o governo australiano classificar os planos como as medalhas: ouro, prata e bronze. Após 12 meses de estudos, decidiu-se pela divisão de acordo com a previsibilidade do sinistro. No nível bronze será oferecida cobertura contra emergências e câncer, além de serviços de reabilitação. No prata foram incluídos tratamentos associados à longevidade, como procedimentos cardíacos e cirurgia complexa na coluna. Já a categoria ouro contempla partos.

Transparência contra custos altos

A inflação médica foi tema do último painel do fórum. No debate intitulado “Custos Crescentes na Saúde: O que Fazer?”, Niall Brennan, presidente do Instituto Americano de Custos de Saúde (HCCI, em inglês), trouxe a experiência da entidade fundada para compreender as causas dos custos elevados e disseminar as informações. A HCCI reúne dados de 100 milhões de americanos cobertos pelas três maiores operadoras do país.

Brennan apontou como um motivo para a inflação médica os remédios de prescrição. “As farmacêuticas estão aumentando os preços dos produtos a cada semana, ou mesmo diariamente, e a situação está saindo do controle. Acabamos de concluir uma pesquisa de gastos com remédios para hipertensão. Embora o número de marcas tenha caído em 15%, as despesas cresceram 30%, ou seja, os remédios estão mais caros”, apontou. Para o HCCI, a transparência dos dados ajuda a enfrentar o problema. O instituto criou o site guroo.com, no qual o consumidor pode conhecer o custo de procedimentos médicos, por meio de um mecanismo de busca.

Brennan relatou uma iniciativa que revelou informações de 3 mil hospitais com gastos com procedimentos e medicamentos. “O governo era proibido de divulgar as prescrições que cada médico fazia. Houve batalha jurídica e, em 2013, os tribunais decidiram que o interesse público era maior que o direito de privacidade do profissional. Nós divulgamos por quantas hospitalizações o médico foi responsável e quantos opioides ele prescreveu, por exemplo”, explicou.

Outro recurso para aumentar a transparência do setor é a sunshine act. Promulgada em 2013, a lei determina a divulgação de benefícios financeiros concedidos por laboratórios a profissionais de saúde. “Há inúmeros casos de médicos que recebiam 100 mil dólares por ano de farmacêuticas. Essas empresas foram processadas e reconheceram que estavam influenciando de forma imprópria a decisão dos profissionais. Hoje, os dados são publicados online. Em cerca de três anos, calcula-se que foram distribuídos 10 bilhões de dólares a médicos.”

Agenda para 2018

No encerramento do fórum, a presidente da FenaSaúde, Solange Beatriz Palheiros Mendes, apresentou dezenas de medidas a serem tomadas no ano que vem. Com relação aos desafios relacionados às OMPE, ela destacou a importância de mudar o modelo de remuneração. “Abandonar o fee for service foi a tônica mais presente desses dois dias de evento”, disse. Quanto à cooperação público-privada no combate a fraudes e abusos, ela reforçou a necessidade de uma legislação punitiva: “O nosso dever de casa é nos empenharmos para que os projetos de lei tenham andamento na Câmara e no Senado”.

No caso do poder sancionador das agências reguladoras, Mendes alertou que as operadoras precisam de mais tempo para apontar fraudes e desperdícios nos pedidos de autorização dos segurados. Avaliações de custo-efetividade prévios à incorporação no rol da ANS foi uma das ações apontadas por ela no tema de cobertura, concorrência e escolhas. “Cada mudança de norma precisa de um estudo complexo”, afirmou. Por fim, para solucionar os custos crescentes no setor, a presidente da FenaSaúde disse que a ANS poderia ajudar tornar públicos os preços de materiais e medicamentos, por exigência da sociedade. Mendes concluiu afirmando que o debate econômico-financeiro travado na saúde suplementar visa o beneficiário: “É ele que vai comprar e utilizar esse produto”.