Imagine passar a infância levando bronca por ser uma criança preguiçosa, manhosa e com dificuldade de aprendizado. E ainda levar anos numa peregrinação por consultórios de diferentes especialidades médicas em busca de solução para dores, fadiga, desarranjos intestinais? Pois esse é um roteiro encarado por pessoas que sofrem da doença de Fabry.

 
Para contribuir com o entendimento das limitações da doença, o projeto de Lei 5984 de 2019 estabelece o 28 de abril como Dia Nacional da Conscientização da doença de Fabry, uma oportunidade para sociedades médicas e entidades como a Associação Brasileira de Pacientes Portadores da Doença de Fabry e seus Familiares (Abraff) e o Instituto Vidas Raras divulgarem informações sobre o tema.

 
Estima-se que a enfermidade acometa na ordem de 1,3 a cada grupo de 2 mil indivíduos. “O distúrbio tem origem em um processamento anormal de substâncias no corpo em razão de mutações nos genes”, explica a cardiologista Sandra Marques e Silva, presidente do grupo de estudos de cardiopatias raras da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

 
Essa alteração resulta na falta ou deficiência de uma enzima chamada alfa-galactosidase A. “Ela é a responsável pela metabolização de um glicoesfingolipidio da família das ceramidas”, diz Sandra. Na ausência da enzima, essa substância se acumula em diferentes partes do corpo, do cérebro às articulações, sem poupar o coração, a pele, os rins e o sistema digestivo. “O problema tem início já na barriga da mãe”, relata a médica. “E essas crianças encaram uma vida inteira de dor, são mal compreendidas. Seus problemas muitas vezes são confundidos com dificuldades de aprendizado e transtornos psicológicos”, destaca.

 
Em geral, é a partir da adolescência ¬– quando o aumento dos depósitos da substância não processada passa a afetar com mais rigor os órgãos – que os sintomas da doença de Fabry se evidenciam. Aí ganham força queixas como queimação nas extremidades, pés e mãos, formigamento muito forte, dor debilitante e desarranjos intestinais frequentes. Outra característica é o aparecimento de pontos vermelhos na pele, conhecidos como angioqueratomas. Essas lesões podem já aparecer na infância e são confundidas com problemas infecciosos como o molusco contagioso.

 
Na adolescência as alterações se tornam mais graves com o desenvolvimento de insuficiência renal com necessidade de diálise, problemas cardíacos com dificuldade de realizar esforço físico além das crises de dor. Brincar e fazer exercício físico viram problemas, porque há também uma dificuldade na regulação da temperatura corporal – a pessoa não sua, o que gera um cansaço constante.

 
O agravante do desconhecimento
Para dar uma ideia do impacto da doença de Fabry na qualidade de vida, Sandra Marques exemplifica: imagine colocar as mãos ou os pés sobre uma chapa quente e não poder tirar. E para piorar, a dor não tem boa resposta a analgésicos e anti-inflamatórios. E nem mesmo a morfina pode melhorar, pois para quem tem o distúrbio, nenhum analgésico é capaz de amenizar as dores pelo corpo.

 
Por se tratar de uma doença rara, a abordagem nos currículos da faculdade de medicina é subvalorizada. O resultado é que os pacientes às vezes procuram de 6 a 10 diferentes especialistas antes de conseguir o diagnóstico correto. Em anos, isto corresponde a 10 anos de atraso no diagnóstico.

 
Ao desconfiar da doença, o médico inicia a investigação com um exame de sangue. A confirmação é feita por um teste de DNA capaz de identificar a mutação genética. Saber o histórico familiar também é crucial no processo. A doença de Fabry está ligada ao cromossomo X. Assim, um homem com esse cromossomo alterado transmite o x doente para todas as suas filhas e para nenhum de seus filhos homens. Já a mulher com dois cromossomos X, sendo um deles com gene anormal, será portadora, sem necessariamente desenvolver os sintomas – e tem 50% de chance de transmitir a alteração tanto para os filhos homens como para as filhas mulheres. “Ao descobrir alguém com a doença de Fabry, deve ser feito o acompanhamento médico e o rastreamento na família para que todos se beneficiem”, diz Sandra. “Os achados ajudam ainda a orientar o planejamento de filhos”, complementa.

 
Avanços terapêuticos

Como não há meio de prevenir o aparecimento da doença de Fabry, quanto mais cedo se chegar ao diagnóstico e se iniciar o tratamento, maiores as chances de conter os danos. “Até o início dos anos 2000 só restava amenizar as complicações provocadas por ela. Hoje, felizmente, já é possível frear sua evolução”, esclarece Sandra.

 
A expectativa de vida da população com a doença até o início dos anos 2000 era de 40 anos, mas com o avanço da medicina, as perspectivas são ainda mais positivas, principalmente com o aumento do crescente conhecimento genético.

 
C-ANPROM/BR//1861 – MAIO 2020 | MATERIAL DESTINADO A PÚBLICO EM GERAL.