Um dos fatores que contribui para a elevação do custo da saúde no Brasil é a fraude. Era de se esperar que o problema diminuísse com a deflagração da chamada Máfia das Próteses. Investigada pela Polícia Federal, ela causa prejuízos aos SUS e aos planos de saúde com a negociação de produtos superfaturados. Dois anos depois de o esquema vir à tona na imprensa, no entanto, pouco mudou. “As operadoras sempre estiveram atentas às fraudes e buscaram auxílio do governo para combatê-las, mas o processo regulatório não facilita o nosso trabalho”, afirma Irlau Machado Filho, presidente do Grupo NotreDame Intermédica. Ele conta que uma averiguação interna do grupo revelou perda de R$ 9 milhões causada por apenas uma clínica.

CPI

As órteses, próteses e materiais especiais, conhecidas pela sigla OPME, são visadas por máfias de saúde por ter alto valor de mercado. Há casos de médicos inescrupulosos que prescrevem cirurgias desnecessárias em troca de vantagens financeiras na aquisição e uso desses materiais. Existem ainda esquemas desses profissionais com escritórios de advocacia para fraudar documentos e obter liminares judiciais com o intuito de realizar procedimentos em beneficiários de planos e seguros de saúde.

Depois que a Máfia das Próteses foi alvo de uma reportagem do programa Fantástico, o Congresso Nacional constituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar a denúncia, da indicação e execução dos procedimentos cirúrgicos à cobrança pelos produtos e serviços prestados. Autoridades do governo e do Judiciário, representantes de conselhos médicos, membros de hospitais e empresas fornecedoras de material médico foram ouvidos, além de vítimas de cirurgias, profissionais de saúde e operadoras de planos de saúde.

Em audiência pública com os parlamentares, o então Ministro da Saúde, Arthur Chioro, apontou como prática negativa do mercado a cobrança, pelos hospitais, de taxas de comercialização de materiais e de utilização de instrumentos e aparelhos para realizar os procedimentos. Chioro mostrou exemplos de dispositivos médicos que têm preço final cinco ou seis vezes superior ao da fábrica, em função do lucro incorporado por todos os intermediários da cadeia comercial, assim como comissões a médicos e hospitais.

Como resultado final, a CPI propôs as seguintes medidas regulatórias: 1) estabelecer uma terminologia padronizada para dispositivos médicos; 2) criar um sistema que permita rastrear as OPME desde a fabricação/importação até o paciente; 3) instituir um modelo de preço de regulação econômica, nos moldes do que é praticado para o mercado de medica- mentos; 4) tipificar como crime a prática de oferecer ou receber comissão em virtude da prescrição de dispositivos médicos.

Superfaturadas ou desnecessárias

O projeto de lei está parado no Congresso e o problema continua a existir. Segundo Irlau Machado Filho, hoje, um mesmo produto pode custar muito menos nos Estados Unidos do que aqui; um stent produzido na Alemanha por 150 dólares é vendido no Brasil por 1.500 a 2.000 dólares, por causa de mecanismos fraudulentos que incluem propina. Para coibir essa prática, o Hospital Albert Einstein implantou um programa de segunda opinião médica para pacientes com indicação de cirurgia na coluna. Concluiu-se que, em 60% dos casos, a operação não era recomendada.

Em outra frente, a operadora aprofundou a investigação sobre advogados e médicos que obtêm repetidas liminares contra a empresa. “Estamos impressionados com a destreza e a complexidade das teias montadas para que isso aconteça”, afirma Machado Filho. Um empecilho para desmantelar as fraudes é o prazo exíguo fornecido pelo processo regulatório do setor. “Em casos de procedimentos cirúrgicos, temos somente 21 dias para dar uma resposta ou sofremos multas. Então, mesmo chegando à conclusão de fraude, podemos ser multados pela agência reguladora se não liberar a operação no prazo.”

Outras fraudes comuns identificadas pelo grupo são: falsa declaração no mo- mento de contratar o plano; faturamento de eventos não ocorridos, cobrança de medicamentos e materiais mais caros e diferentes dos utilizados; omissão de casos graves entre os beneficiários de planos empresariais no processo de cotação; realização de exames desnecessários; pedidos de reembolso falsos ou superfaturados; uso de carteirinha por pessoa não beneficiária do plano de saúde.

Judicialização

Desde que a Máfia das Próteses veio a público, o Judiciário está mais atento à atuação de profissionais inescrupulosos. Porém, na opinião do desembargador Cesar Cury, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a judicialização da saúde sai cara para a sociedade como um todo. Trata-se de processos dispendiosos e demorados, que envolvem perícias e diligências. Segundo o desembargador, o TJ-RJ teve em 2016 quase 300 mil processos relacionados à saúde, e recebe em média 25 mil novas demandas por mês. De 2010 a 2015, o número de causas movidas por pacientes aumentou 92%. “Não é razoável, esses processos nem deveriam existir. O diálogo precisa ocorrer entre médico, hospital, paciente e plano de saúde”, afirma o Cury.

O desembargador recomenda que, em vez dos tribunais, as partes recorram aos canais de mediação. “As pes- soas precisam conhecer esse sistema que é paralelo à Justiça, mas fiscaliza- do por ela”, diz. “Enquanto um pro- cesso custa R$ 25 mil, o acordo de mediação não chega a 5% desse valor.” Para Cury, as operadoras de plano de saúde deveriam procurar ativamente os clientes que a acionam por meio de seus sistemas de atendimento, não apenas responder passivamente quando acionadas pela Justiça. “O custo para as empresas seria infinitamente mais barato”, diz.