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“Escolhi fazer meu parto humanizado com uma enfermeira”

Mães relatam a experiência de dar à luz com o auxílio de enfermeiros ou obstetrizes; entenda como é realizado esse tipo de parto

“Ligue para as enfermeiras, o bebê vai nascer.” Eram seis horas da manhã de sábado. O pedido da arquiteta Ligia Rabelo para o marido soou mais do que urgente. Com 39 semanas de gestação, as contrações haviam se intensificado durante a noite.

Duas enfermeiras que acompanharam o pré-natal viriam para conduzir o parto domiciliar, além de uma doula – especialista que oferece apoio emocional em todas as etapas. A expectativa era imensa, pois, dois anos antes, Ligia havia passado por uma experiência traumática: o parto induzido de um bebê que morreu dentro de sua barriga, aos sete meses. “Depois do trauma, a gravidez foi saudável e eu queria que, desta vez, o parto fosse o mais tranquilo possível”, conta a arquiteta de 34 anos.

Sua amiga Valentine Kasin, a doula, foi a primeira a chegar. Depois de massagear a lombar de Ligia, para aliviar as dores, cuidou para que ela se alimentasse de castanhas, frutas e água-de-coco. David, o marido, ficou a postos. Logo mais vieram a enfermeira dra. Marcela Zanatta e a obstetriz dra. Heloisa Nogueira. “Só me lembro de ver as duas sorrindo, me acalmando”, diz Ligia.

Equipe reunida: no centro, Ligia, seu marido, e a recém-chegada Lara. Ao redor, a doula Valentine Kasin (em pé), as enfermeiras Heloisa Nogueira (agachada ao lado de Ligia) e Marcela Zanatta (ao lado de David), e a fotógrafa Roberta I Luminascer fotografia

Os batimentos cardíacos da mãe do bebê iam sendo monitorados. Ligia ora deitava de lado, ora sentava na banqueta em forma de U, acessório que ajuda nos partos. No início da manhã, a barriga ainda estava “alta”. Marcela, então, fez movimentos que auxiliam no encaixe da cabeça do bebê. Quando Ligia reclamava de dor, ouvia Heloisa dizer: “Calma, ela está descendo devagar, para não te machucar”. Depois de seis horas de trabalho, o relógio marcou 10h. “Foi quando Marcela me deu a mão e tive a última contração. Fiz força total e Lara nasceu!”, lembra, emocionada.

A menina Lara foi colocada no colo da mãe, ainda ligada ao cordão umbilical. Nos partos domiciliares, ele só é cortado depois de uma hora. É a chamada “hora de ouro”, quando os pais ficam a sós com o bebê. “Meu parto foi uma experiência de cura, um presente de Deus. Esqueci o passado e tive um momento mágico, amparada por profissionais que me passaram carinho, confiança, empatia e muita paz”, diz ela.

Mulher tem direito a escolha

A história de Ligia é uma das mais marcantes entre os quase 300 partos realizados pela enfermeira dra. Marcela Zanatta. Aos 37 anos, mãe de quatro filhos, ela optou pela especialização em obstetrícia depois de uma experiência ruim no parto do primeiro filho, quando sentiu que não teve autonomia nas escolhas durante o processo – o que é uma das premissas da humanização. “O objetivo do parto humanizado é proporcionar segurança à mãe e ao bebê, mas também garantir que a mulher tenha uma boa experiência”, diz ela.

Vale lembrar que os conceitos de parto normal e humanizado são diferentes. Parto normal é o que ocorre por via vaginal. Já o parto humanizado, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), consiste em “um conjunto de condutas e procedimentos que promovem o parto e o nascimento saudáveis, pois respeita o processo natural e evita condutas desnecessárias ou de risco para a mãe e bebê".

A humanização, portanto, é um movimento que vem para combater a violência obstétrica e práticas desnecessárias - como episiotomia (incisão no períneo) e aplicação de ocitonina, para estimular dilatação. Daí o protagonismo cada vez maior das enfermeiras.

“Com o aumento das discussões e o fomento ao parto humanizado, a enfermagem vem assumindo cada vez mais esse espaço, o que é importante para o protagonismo da categoria e, também, para a autonomia das mulheres na escolha do seu parto, tendo sempre em vista a segurança da parturiente e do bebê”, diz a Profª. Dra. Renata Pietro, presidente do Coren - SP.

Autonomia é a palavra-chave. “O parto humanizado implica em decisões compartilhadas, sem situação de hierarquia. Assim, a mulher participa e se responsabiliza pelas escolhas, em todas as etapas”, diz Marcela.

Aprovado por lei

Segundo a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (7.498/1986), é atribuição do enfermeiro prestar assistência de enfermagem à gestante, parturiente e puérpera, fazer o acompanhamento da evolução e do trabalho de parto e a execução do parto, sem qualquer perturbação que o dificulte ou impeça. A Normativa 398/2015, inclusive, prevê o credenciamento de enfermeiros obstetras e obstetrizes por operadoras de planos privados de saúde e hospitais credenciados.

Em março de 2017, o Governo Federal lançou uma publicação inédita sobre as diretrizes de assistência ao parto normal no Brasil. Entre as novidades do documento, estava a possibilidade de o parto ser feito pela enfermeira obstetra ou obstetriz, tendo em vista que a participação da enfermagem no acompanhamento da gestação e do parto é apontada como fundamental para a humanização da assistência.

A obstetriz e a enfermeira obstetra têm formação similar. A diferença é que, enquanto a primeira faz a formação direta em obstetrícia, a segunda cursa enfermagem e depois a especialização. Elas atuam em duas frentes: no hospital, junto ao médico de plantão, ou contratadas pela gestante. Se a gravidez é de baixo risco, abre-se a possibilidade de o parto ser extra-hospitalar, seguindo protocolos de segurança.

“O mais importante é compreender que o parto é uma situação de saúde e não de doença”, diz a enfermeira dra. Marcela. Ela ressalta, contudo, a importância do acompanhamento pré-natal. Não são todas as gestantes que podem ter um parto domiciliar. Isso vai depender de como está a saúde da mãe e do bebê ao longo da gravidez. “Se houve um bom pré-natal, se o bebê não é prematuro, se a mãe não é diabética, se os bebês não são gêmeos, tudo tende a correr bem. E há sempre um ‘plano de transferência’ para um hospital próximo, a no máximo 20 minutos de distância, caso seja necessário”, diz Marcela.

Um momento mágico

A atriz Sophia Reis, de 31 anos, grávida da primeira filha, Gal, queria passar a maior parte do tempo em casa, antes de seguir para o hospital. Chegou a preparar uma banheira para um possível parto na água. “Vejo o parto humanizado como uma política de cidadania, em que a mulher tem escolha sobre seu corpo. Não sou mística, reconheço que a cesariana salva vidas. Mas não queria terceirizar o parto para um aparato médico”, diz.

Ela montou sua equipe: as obstetrizes Natalia Rea e Priscila Raspantini e a doula Janie de Paula. “O parto natural traz outra perspectiva de empoderamento da mulher. Eu me sentia segura e sabia que teria assistência”, diz.

Foto de arquivo pessoal da atriz com o marido na hora do parto I Crédito: Bia Sakata

A jornada foi longa. As contrações começaram em um domingo, mas sem ritmo. Seguiram assim durante até a quarta-feira, quando ganharam quatro horas de intervalo. As enfermeiras propuseram exercícios de “spinning babies”, uma série que estimula a flexibilidade da pelve da mulher e facilitam a rotação do bebê.

Entre os artifícios usados no parto humanizado, pode-se optar por luz baixa e música calma. A doula colocou a playlist “Parto Suave” no Spotify. “Estávamos todos lá, tripulantes do mesmo barco, com a mesma missão. Meu marido, Arthur, não desgrudou da minha mão um minuto sequer, como se fosse meu elo com o mundo”, lembra Sophia.

O parto acabou acontecendo no quarto. “Eu confiava cegamente na minha equipe, sabia que só me diriam para fazer algo se realmente precisasse”. Seu maior medo era a hora do expulsivo. “Quando começaram os puxos involuntários, senti que devia surfar na onda.”

Na fase final, Natalia disse, com firmeza: “Ela precisa nascer agora.” Eram 7h30 de quinta-feira. “Com a força de uma leoa, dei tudo de mim. Gal veio direto pra o meu colo e eu só conseguia beijá-la”, conta a atriz.

Sophia se envolveu tanto com o tema que está no terceiro ano de enfermagem, para ser obstetra. “Como atriz, percebi que queria falar com as mulheres de outro lugar. As enfermeiras desenvolvem um trabalho que vai além do fisiológico, que tem a ver com cuidado e acolhimento”, defende ela.

Parir é humano

“A enfermagem está protagonizando esse campo da assistência, pois é a categoria que está à frente das políticas de acolhimento e humanização. Também incentivamos a criação de protocolos institucionais, para respaldar as práticas de enfermagem neste campo de atuação”, reforça a presidente do Coren-SP, Prof.ª. Dra. Renata Pietro.

Com foco no empoderamento da categoria para a realização de partos, o Coren-SP tem um Grupo de Trabalho de Saúde da Mulher que aborda como um dos eixos a assistência à mulher em todas as fases da gestação, do pré ao pós-parto, , de forma humanizada e segura.

Kathleen e sua pequena Íris, hoje com 1 ano e 6 meses. Foto de arquivo pessoal

No SUS, as enfermeiras atuam em parceria com os médicos obstetras. Elas realizam o acolhimento e atendem os partos de baixo risco, enquanto o médico foca nas gestantes do grupo de alto risco, ainda podendo contar com a expertise da enfermeira obstetra na condução do processo de nascimento, com foco na segurança e na boa experiência.

A influenciadora digital Kathleen Cristina Barbosa, de 29 anos, comemora a sorte de ter cruzado com a enfermeira dra. Ioná Araújo de Souza no plantão da Santa Casa de Atibaia (SP). Ao chegar ao hospital, Ioná a recebeu na sala de pré-parto. “Vamos para o chuveiro?”. A sugestão trouxe alívio. “Fiquei horas no chuveiro e a dor diminuiu”, lembra.

Quando confessou que tinha medo, Ioná disse: “Estou aqui, pode gritar!”. A enfermeira passou o dia segurando sua mão, trazendo água, comida, apoio. “Ela cuidou de mim como se eu fosse um passarinho no ninho”, diz Kathleen.

A interação entre as duas foi tanta que, mesmo ao fim do plantão, Ioná chegou a passar a ficha para uma colega, mas voltou. “Não posso te deixar aqui sozinha”, disse. Nos momentos agudos, Ioná a acalmava dizendo: “Deus não faz forma errada. Estou aqui, vou te ajudar! ” A menina Íris nasceu saudável, às 23h15.

A enfermeira dra. Ioná ao lado do recém-nascido Nicolas, a quem ajudou a chegar ao mundo. Foto de arquivo pessoal

A enfermeira dra. Marcela Zanatta define o que é estar presente nesses momentos: “É como ser convidada de honra de um evento muito especial e pessoal”. A beleza da humanização, para ela, reside no fato de que cada nascimento é único. “Parto não é ciência exata. A mulher sabe que escolheu, se sente empoderada. Ela conhece seus limites, entende seu corpo e toma as rédeas de sua saúde”, diz a enfermeira.

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