Revista SIM

02 de outubro de 2018

Oportunidades na pista

A demanda por transporte no mundo dobrará no período entre 2010 e 2050, de acordo com projeção da Agência Internacional de Energia, órgão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E o impacto nas rodovias será proporcionalmente maior do que em outros modais: a projeção é de que o número de veículos em circulação no mundo salte nesse período de 1 bilhão para 4 bilhões, com grande concentração nos países em desenvolvimento.

Ainda mais relevante que o maior volume de tráfego será, contudo, a mudança do perfil do transporte rodoviário. A disseminação dos veículos autônomos e a adoção crescente da energia elétrica como combustível, associadas a outras tecnologias emergentes, provocarão uma revolução na mobilidade. Os ganhos esperados são muitos, desde o aumento da produtividade (por conta do uso mais racional da infraestrutura e da redução dos congestionamentos) até melhorias na saúde pública, decorrentes da queda das emissões de gases poluentes e do número de acidentes.

Para que o transporte do futuro se torne mais equilibrado e viável dos pontos de vista econômico, social e ambiental, como se espera, é fundamental que a infraestrutura rodoviária seja preparada para acompanhar o salto tecnológico do setor automotivo. Isso implica redefinir um status que a limitava a um conjunto de componentes físicos – pontes, viadutos, sinais de trânsito – para uma nova realidade, que agrega uma série de componentes digitais e eletrônicos, incluindo inteligência artificial e tecnologias de rede sem fios. A cobertura 5G, a quinta geração de internet móvel, que começa a chegar a alguns países no ano que vem com a promessa de conexões mais estáveis e de multiplicar por dez a velocidade atual de transmissão de dados, será essencial para permitir a comunicação eficiente e confiável dos veículos com a infraestrutura rodoviária, um requisito nesse novo cenário.

Década de oportunidades

O recente estudo Road Tech, realizado pela Economist Intelligence Unit, identificou uma série de tecnologias que estão sendo desenvolvidas ao redor do mundo para aprimorar o desempenho automotivo e a infraestrutura rodoviária. O cenário vislumbrado para o futuro próximo é otimista, desde que sejam tomadas as medidas necessárias para viabilizar a transformação – desde a atualização das legislações até o aporte de investimentos.

Segundo Melanie Noronha, responsável pelo estudo, a próxima década será decisiva para promover a adoção efetiva dessas tecnologias em larga escala. Novas normas terão de ser definidas e haverá mudanças no comportamento dos usuários e na forma como a opinião pública avalia questões relativas à mobilidade. “A janela de oportunidades para conseguir o melhor para as próximas gerações está aberta”, afirma.

Outra análise divulgada recentemente – “Uma estrada melhor para o futuro”, do McKinsey Global Institute – projetou em US$ 900 bilhões o nível necessário de investimento anual em infraestrutura rodoviária, ao longo da próxima década, para atender às demandas decorrentes das mudanças que o setor rodoviário enfrentará. Isso representa um acréscimo de R$ 180 bilhões por ano ao patamar atual. É um gap considerável, mas proporcionalmente muito menor do que o identificado no Brasil.

Arteris Fluminense (BR-101/RJ); no destaque, Arteris Fernão Dias (BR-381/ SP-MG)

Necessidade de investimento

Um estudo feito pela consultoria Inter.B sob encomenda da Confederação Nacional da Indústria (CNI) estimou que, para não ficar para trás e conseguir recuperar posições no cenário competitivo internacional, o País precisa dobrar seu volume de investimentos em infraestrutura como um todo, passando da faixa de 2% para 4% do Produto Interno Bruto (PIB). E esse novo patamar terá que ser mantido por duas décadas, período que exigirá investimentos projetados de R$ 8 trilhões.

A principal recomendação do estudo da Inter.B no que diz respeito às rodovias – responsáveis por 64,9% do volume de cargas transportado no País – é acelerar as concessões previstas no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). “O único caminho para conseguir a ampliação necessária dos investimentos é fomentar uma participação cada vez maior da iniciativa privada”, diz o coordenador da pesquisa, Cláudio R. Frischtak, sócio da consultoria.

No ano passado, a iniciativa privada participou com 31,5% dos R$ 20,4 bilhões investidos no modal rodoviário no Brasil. Considerando a limitação orçamentária do setor público, comprometido com outras áreas, especialmente educação, saúde e previdência, os especialistas acreditam que é importante estimular mais investimentos privados.

Outra diretriz sugerida pelo estudo é transferir para operadores privados os trechos de rodovias que demandem apenas serviços de recuperação e manutenção, com cobrança de pedágio por períodos menores que os habituais – dez anos, por exemplo. “É uma opção que amplia as oportunidades para que novos investidores e operadores ingressem no mercado, ao mesmo tempo em que desonera os cofres do governo e assegura a melhoria da qualidade nas estradas”, avalia Frischtak.

A ideia está em sintonia com uma das conclusões do McKinsey Global Institute: parte considerável da necessidade atual de investimentos em rodovias pode ser credenciada ao passivo decorrente da falta de manutenção adequada, que levou à deterioração da malha rodoviária em muitos países – o Brasil entre eles. Diante dessa constatação, o estudo aponta que uma ação tão importante quanto buscar a efetividade no desenvolvimento de novos projetos e usar técnicas adequadas de construção é extrair o melhor resultado possível da infraestrutura já existente – o que significa, em primeiro lugar, conservá-la.

Parceria e colaboração são as palavras de ordem diante do novo cenário que se desenha. Não apenas entre o governo e a iniciativa privada, mas também entre os diversos níveis do governo, entre empresas privadas e de todos esses níveis com o universo acadêmico. “Um passo importante é atrelar as decisões sobre investimentos ou melhoria da infraestrutura a critérios rigorosamente técnico-científicos”, diz o professor Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Logística, Infraestrutura e Supply Chain da Fundação Dom Cabral.

Cenário para 2035

Em junho, a Dom Cabral lançou, sob a coordenação de Resende, a Plataforma de Infraestrutura em Logística de Transportes (PILT), com o objetivo de produzir e compilar informações sobre o setor, fornecendo material confiável para os tomadores de decisões a partir de ferramentas de big data analytics, desenvolvimento de estudos georreferenciados e simulações multivariadas. Por ocasião do lançamento da PILT, a Dom Cabral apresentou um estudo que projeta o cenário logístico para o Brasil em 2035, com base nas perspectivas de investimentos. Até lá, o peso total das cargas transportadas no Brasil deverá subir 43,7%, e as rodovias continuarão sendo, disparadamente, seu principal meio de transporte, responsáveis ainda por 52% do peso total.

Há a expectativa de que o desenvolvimento de outros modais permita a transferência gradual de cargas que estão passando hoje pelas rodovias, mas não deveriam, de tal forma que cada modalidade possa exercer mais plenamente sua vocação, o que permitirá maior equilíbrio de custos na logística como um todo. “Os caminhões com cargas gerais percorrem, em média, 1.114 quilômetros por viagem no Brasil, quando, em países desenvolvidos de dimensões igualmente continentais, a média fica em torno de 400 quilômetros para cargas da mesma natureza”, compara o professor Resende.

Ele projeta que, ao menos na próxima década, as oportunidades de inovação a serem adotadas no transporte de cargas no Brasil não estarão diretamente ligadas aos avanços tecnológicos de ponta que estão sendo testados no exterior. “Há um grupo de países desenvolvidos nos quais avanços como veículos autônomos já podem ser disseminados como parte da busca por eficiência. No Brasil, a adoção de novas tecnologias ainda estará voltada a outra prioridade, que é a redução dos riscos logísticos”, diz ele.

Assim, ganharão impulso por aqui novas tecnologias de rastreamento de cargas, de roteirização inteligente das viagens para reduzir os riscos de assaltos e de telemetria dos caminhões, para que o desempenho dos veículos, a performance do motorista e as condições das rodovias possam ser avaliados em detalhes.

O sucesso do modelo de concessões

Investimentos de R$ 178 bilhões garantem rodovias melhores e mais seguras

O programa brasileiro de concessões é um exemplo claro do papel que a iniciativa privada pode exercer no desafio de aprimorar as condições das rodovias. A malha concedida no País, que totaliza 19.463 km – 9,2% da extensão total de rodovias federais e estaduais pavimentadas –, apresenta qualidade muito superior àquela que permanece sob gestão pública.

Nas rodovias concedidas, 74,4% da extensão está em boas ou ótimas condições, enquanto naquelas sob gestão pública o percentual é de apenas 29,6%, de acordo com a Pesquisa CNT de Rodovias. “Essa diferença não foi alcançada por acaso. As concessionárias já investiram R$ 178 bilhões em melhorias e manutenção das rodovias no Brasil”, diz o presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Rodovias (ABCR), César Borges, ex-governador da Bahia e ex-ministro dos Transportes.

As rodovias que passaram à gestão das concessionárias acumulavam carência de vários tipos – desde as mais básicas, como limpeza e sinalização, até as mais complexas, a exemplo de más condições do pavimento e necessidade de obras estruturantes relacionadas à segurança (retornos, passarelas e vias laterais para separar o tráfego urbano do rodoviário). À medida que essas carências foram sendo supridas, o índice de acidentes despencou.

Vias mais seguras

A Arteris Fluminense, responsável pela BR-101 no estado do Rio de Janeiro, reduziu as fatalidades em mais de 60% desde o início da concessão. A Arteris Planalto Sul, responsável pela BR-116, que liga Curitiba (PR) à divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul, atingiu resultado semelhante – com tendência de nova queda em 2018, depois que o primeiro semestre registrou redução de 16% em relação ao mesmo período do ano anterior. Na Arteris Régis Bittencourt, o número de mortes caiu 55% nos últimos seis anos. “Estamos agora trabalhando a conscientização das comunidades próximas à rodovia, pois a maior parte dos acidentes fatais que continuam ocorrendo dizem respeito a atropelamentos e entradas imprudentes na pista por veículos do trânsito local”, diz o diretor-superintendente da Arteris Régis Bittencourt, Nelson Bossolan.

Além da segurança, as concessionadas trazem para as rodovias uma série de outras inovações importantes. Um exemplo são tecnologias para geração de energia limpa, como eólica e solar. Nessa área, a Arteris Fluminense desenvolveu uma iniciativa pioneira no Brasil, que será ampliada para outras empresas do grupo: a instalação de um sistema de minigeração de energia solar em uma de suas praças de pedágio, em Campos dos Goytacazes (RJ), que por conta disso se tornou autossuficiente. A energia produzida por 280 placas solares, instaladas em dois telhados, é lançada no sistema de fornecimento da Enel, dando à Arteris o direito a desconto proporcional na conta de energia, além de evitar a emissão de 18 toneladas de gás carbônico na atmosfera por ano.

Muitas oportunidades para investimentos

O cenário de inovações no sistema de transportes, com o surgimento de novas tecnologias em todos os elos da cadeia – dos veículos à malha rodoviária —, proporciona muitas oportunidades para investimentos. Para atrair maior participação da iniciativa privada na infraestrutura de transportes, os especialistas afirmam que um dos desafios é estipular regras em parcerias público-privadas e concessões para longos períodos. “A infraestrutura é um dos impulsionadores do desenvolvimento econômico, e a mobilização de capital privado é um objetivo importante, mas esse potencial tem ficado aquém do que poderia porque os investidores enfrentam muitas incertezas”, diz a gestora do Conselho de Parceria Corporativa do Fórum Internacional de Transportes da OCDE, Sharon Masterson.

Para analisar esse contexto mais profundamente, o Fórum convocou um grupo de trabalho com 33 renomados especialistas internacionais para revisar o pensamento atual sobre como mobilizar mais capital privado para projetos de infraestrutura de transporte. Encontrar fórmulas para diminuir a incerteza nos contratos é um dos focos principais. O relatório resultante, apoiado por 19 documentos, intitulado “Investimento privado em infraestrutura de transporte”, foi lançado em junho.

Trata-se de uma análise das características econômicas da infraestrutura, com definição estruturada do papel do investimento privado e sugestão de estratégias para reduzir as incertezas dos contratos e, de forma geral, os custos relacionados à infraestrutura. “É uma ferramenta importante para ajudar as autoridades a lidar com as incertezas na aquisição de infraestrutura em parceria com a iniciativa privada”, diz Masterson.

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