Revista SIM

02 de outubro de 2018

Eles estão chegando

Até outro dia parecia cena de ficção científica, mas os veículos autônomos, capazes de circular sem motorista graças ao uso combinado de câmeras, sensores, radares e recursos de inteligência artificial, estão se transformando rapidamente em realidade. Pelo menos oito milhões deles já deverão estar em circulação no mundo em 2025, de acordo com projeção da empresa de pesquisas ABI Research. Apenas cinco anos depois, em 2030, 15% dos carros comercializados no planeta serão completamente autônomos, caso as questões tecnológicas e regulatórias evoluam a contento, prevê a consultoria McKinsey.

Entre os diversos benefícios prometidos pela nova tecnologia, incluindo o tempo livre para os antigos motoristas e a redução dos congestionamentos por conta do uso mais racional e planejado da infraestrutura rodoviária, nenhum é tão importante quanto a perspectiva de reduzir drasticamente o número de acidentes. Hoje, em todo o mundo, eles tiram a vida de 1,25 milhão de pessoas por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde. A McKinsey estima que os veículos autônomos deverão eliminar 90% dos acidentes.

Do ponto de vista financeiro, o ganho também será imenso. O Fórum Econômico Mundial estima que os gastos decorrentes de congestionamentos e acidentes sejam de US$ 1,4 trilhão por ano, chegando a consumir 5% do Produto Interno Bruto (PIB) em países de baixa e média renda – que proporcionalmente arcam mais com esses custos, pois suas  taxas de mortes no trânsito chegam a ser três vezes superiores às dos países de alta renda.

A revolução certa e iminente no mercado de transporte e de logística tem mobilizado um amplo conjunto de desenvolvedores em torno desses setores. Das mais tradicionais montadoras de carros às jovens empresas de tecnologia, todas correm para viabilizar operacional e comercialmente seus projetos de veículos autônomos. “Irmã” do Google no conglomerado Alphabet, a Waymo é considerada a líder dessa corrida. Em 2015, foi responsável pelo primeiro passeio em vias públicas de uma pessoa a bordo de um carro totalmente autônomo – o escolhido foi Steve Mahan, um homem de 63 anos com grandes dificuldades de visão, a ponto de ser considerado legalmente cego. Ele passeou durante dez minutos pelas ruas de Austin, no Texas.

Desde 2009, quando foi criada, a Waymo já acumula 13 milhões de km percorridos em vias públicas. O grande salto está sendo dado neste ano, contudo – 2018 começou com 7 milhões de km percorridos, número que já foi quase dobrado só no primeiro semestre. A empresa está recrutando voluntários que aceitem participar de testes na região de Phoenix, no Arizona. A proposta é que sejam buscados em casa e levados de volta por veículos autônomos a seus destinos frequentes, como trabalho e escola. Em troca, eles relatam suas impressões à equipe de desenvolvimento. Parcerias com esse mesmo propósito foram estabelecidas com clientes da rede de supermercados Walmart e da locadora de automóveis Avis.

A Uber é outra protagonista no desenvolvimento de veículos autônomos. Uma das suas vantagens é o imenso manancial de informações disponíveis por conta de 10 bilhões de corridas que o aplicativo já viabilizou desde a fundação, em 2010.

Muitas outras iniciativas surgem de todos os lados. A Intel comprou no ano passado a israelense Mobileye, por US$ 15,3 bilhões, para aumentar seu poder de fogo na disputa pelo fornecimento de chips que serão os “cérebros” dos carros autônomos – a empresa anuncia para 2021 o lançamento do chip EyeQ5, que permitirá a automatização de tarefas como direção em estrada e frenagem de emergência.

A Apple também está empenhada em um projeto de veículos autônomos, mas a empresa tenta manter o máximo de sigilo a respeito. “Estamos focados em sistemas autônomos”, admitiu o CEO da empresa, Tim Cook, em uma coletiva de imprensa no ano passado. “É provavelmente um dos projetos mais desafiadores de inteligência artificial no qual estamos trabalhando.” Reportagens de veículos como o The New York Times e a Business Insider dão conta de que a empresa teria atualmente pelo menos 50 veículos sendo testados na Califórnia. A dúvida é se a marca estaria desenvolvendo veículos completos ou apenas partes do sistema.

Acompanhando toda essa movimentação, a Amazon criou uma equipe especialmente com a missão de analisar como os veículos autônomos poderão ser integrados aos processos de entrega de mercadorias.

A China está na briga

A efervescência em torno dos veículos autônomos inclui a China, como não poderia deixar de ser. A gigante da tecnologia Baidu (o “Google” chinês) criou uma plataforma, a Apollo, que oferece aos parceiros softwares abertos para o desenvolvimento de sistemas de direção autônoma, em troca do benefício mútuo de acesso às informações. Mais de 100 players do mercado, entre montadoras e fornecedores de peças, de software e de hardware, já se integraram à plataforma, mantida por contribuições dos integrantes – entre as parceiras está a poderosa Microsoft. Um dos projetos da Apollo, desenvolvido em parceria com a montadora chinesa King Long, já está colocando no mercado o Apolong, um micro-ônibus autônomo com 14 lugares.

A Didi Chuxing, concorrente chinesa do Uber, também está apostando na união de forças – seu projeto na área, a Didi Auto Alliance, envolve mais de 30 parcerias, incluindo montadoras locais, como a Geely, e subsidiárias de marcas globais, a exemplo de Renault e Volkswagen. O objetivo é fomentar a produção de veículos autônomos elétricos e incentivar o uso de frota compartilhada como estratégia para combater os problemas causados por congestionamentos, incluindo a poluição. Fabricantes de veículos elétricos, como a norte-americana Tesla e a chinesa Nio, também estão no centro do furacão, pois as duas revoluções tecnológicas – os elétricos e os autônomos – estão bastante ligadas uma à outra.

As grandes montadoras se mexem

Nunca se imaginou que Detroit, o centro da indústria automobilística dos Estados Unidos, se aproximaria tanto do Vale do Silício, a meca mundial da tecnologia, mas é isso que vem ocorrendo por conta dos veículos autônomos. As grandes montadoras nunca dependeram tanto da inovação quanto neste momento – e têm investido alto para se posicionarem bem no novo cenário. Nenhuma delas quer repetir a sina da Kodak, que demorou para entender o tamanho da mudança trazida pelas câmeras fotográficas digitais e em poucos anos pôs a pique uma trajetória centenária.

A Ford criou uma unidade específica para cuidar do desenvolvimento dos autônomos, com investimentos previstos de US$ 4 bilhões até 2023, e anunciou para 2021 o lançamento de seu primeiro modelo guiado inteiramente de forma automática, graças aos acordos feitos com quatro parceiros estratégicos – Velodyne, SAIPS, Nirenberg Neurosciente LLC e Civil Maps –, que fornecerão soluções para algoritmos avançados, mapeamento em 3D e tecnologia para sensores, câmeras e radares. Já a General Motors adquiriu em 2016 uma startup, a Cruise, para acelerar o desenvolvimento dos autônomos. A nova unidade de negócios prepara o lançamento de um serviço de táxis-robôs que deverá entrar em operação já no ano que vem, inicialmente em San Francisco.

Enquanto isso, montadoras de fora dos Estados Unidos se organizam para fazer frente ao poderio das concorrentes norte-americanas. Surgiram alianças que podem até ser consideradas inusitadas, como a da alemã Audi, pertencente à Volkswagen, com a chinesa Huawei. Em julho, a também alemã Daimler foi a primeira montadora não chinesa a receber licença para testar veículos autônomos em Pequim. A japonesa Toyota investiu US$ 3 bilhões na compra de uma empresa de softwares para carros autônomos.

A coreana Hyundai anunciou o Nexo, um modelo que tem como grande diferencial o uso de um tanque de hidrogênio para gerar energia para o motor elétrico, evitando a necessidade de reabastecimento na tomada. Com isso, fica assegurada uma autonomia de até 600 km para o veículo, tendo como resultado da “queima” apenas água, em vez dos gases nocivos dos motores a combustão. Caso se mostre comercialmente viável, a resolução do problema da recarga será um passo fundamental para o uso dos autônomos em viagens de longa duração, já que um dos problemas dos carros elétricos nessas circunstâncias é o tempo necessário para esse processo.

O desafio das situações complexas

Um desafio para o avanço da tecnologia dos veículos autônomos é lidar com situações que exigem uma leitura rápida e precisa de uma grande variedade de dados, como o trânsito complexo de uma grande cidade. É em circunstâncias assim que a prática do mundo real mais se distancia dos resultados dos testes feitos em condições controladas e com alto grau de previsibilidade. “Por isso é tão importante ter um grande número de horas de testes, pois é só assim que as situações mais imprevisíveis acabam acontecendo”, diz o professor de Robótica da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Osório.

Superar essas situações de forma eficiente e segura é um passo essencial para as fases de transição dos veículos autônomos. O mercado trabalha com uma escala com seis níveis, onde 0 se refere ao controle total do veículo pelo motorista e 5 à autonomia plena. A maioria das iniciativas que chegarão ao mercado nos próximos cinco anos estarão situadas nos estágios 3 e 4, que preveem a necessidade de intervenção do motorista em situações mais complexas.

O Grupo Abertis, acionista, ao lado da Brookfield, da administradora de concessões rodoviárias brasileira Arteris, participa ativamente de pesquisas para aprimorar a forma como os veículos autônomos lidarão com as situações mais desafiadoras nas rodovias. Esses projetos são importantes porque escapam da tendência geral das iniciativas relacionadas aos veículos autônomos, quase sempre concentradas nos veículos, e não na infraestrutura viária.

Um deles é a parceria formada pela Sanef, filial da Abertis na França, com a Renault, dentro do projeto Scoop@F, que investiga como aprimorar a comunicação da infraestrutura rodoviária com o veículo autônomo. A proposta é encontrar meios de fornecer ao veículo as informações necessárias para a tomada de decisões complexas em cenários que envolvem outros carros se movendo ao redor em situações previsíveis (como a escolha da cabine de pedágio) ou imponderáveis (reações a pessoas ou animais cruzando inesperadamente a pista, por exemplo).

Já a Autopistas, integrante do Grupo Abertis na Espanha, participa do Inframix, projeto da Comissão Europeia focado na necessidade de preparar a infraestrutura para a convivência de veículos convencionais e autônomos, situação que se estenderá por um bom tempo até a “extinção” completa do motorista humano. Os testes feitos ao longo de 20 km da rodovia AP-7, nas proximidades da cidade de Girona, na Catalunha, ajudarão a definir protocolos de segurança e contribuirão para o desenvolvimento de novos tipos de sinalização e de outros elementos físicos. 

Brasileiros são abertos à tecnologia

E o Brasil, como se posiciona nesse novo cenário? A consultoria KPMG fez uma pesquisa em 20 países para medir a aptidão para carros autônomos, e o Brasil ficou em 17º lugar – à frente apenas de Rússia, México e Índia. Enquanto a líder Holanda acumulou 27,73 pontos na soma de notas relacionadas a diversos aspectos, envolvendo tecnologia, legislação, infraestrutura e opinião pública, o Brasil ficou com apenas 7,17 pontos (a lanterna foi a Índia, com 6,14 pontos).

“O Brasil só não ficou em posição ainda pior graças ao item da pesquisa que avalia o grau de abertura da população à ideia do carro sem motorista, vista com mais resistência em outros países. Os brasileiros são tradicionalmente mais abertos a novas tecnologias”, diz o consultor da KPMG Maurício Endo. A desconfiança do público é mesmo um obstáculo a ser superado pelos veículos autônomos. Uma recente pesquisa do Instituto Gartner nos Estados Unidos e na Alemanha apurou que 55% dos entrevistados não aceitariam entrar em um veículo sem condução humana, alegando, principalmente, o receio de panes que poderiam colocar em risco a integridade física dos passageiros. Houve também quem tenha manifestado preocupação com o impacto no mercado de trabalho, já que o setor de transportes é um dos que mais gera empregos no mundo.

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